Relacionamentos abusivos: como identificar e quebrar o ciclo - Epopéia

Todo mundo sonha em viver um grande amor, encontrar uma paixão, a metade da laranja, a tampa da panela… e em nome deste desejo muitas pessoas se deixam envolver em relacionamentos abusivos ou tóxicos.

O mais surpreendente é que as pessoas não percebem isso acontecer, tanto a parte que ‘abusa’, quanto a parte que é ‘abusada’. Elas se perdem nas fronteiras dos relacionamentos abusivos e quando percebem, já se machucaram demais.

É muito comum nós nos empatizarmos pela ‘vítima’ e condenarmos o ‘abusador’; contudo, numa perspectiva psicológica; a dinâmica da relação não é tão simples assim.  Existem condições emocionais, contextos, traumas que vão colorir os 50 tons de cinza desta relação.

Não me entendam mal, não estou aqui para romantizar os relacionamentos abusivos que invariavelmente culminam na violência doméstica, a qual é um câncer para a sociedade.  No contexto da pandemia, tivemos aumento de ocorrências no mundo inteiro e de acordo com a diretora executiva da ONU Mulheres, existe uma “pandemia invisível” de violência doméstica.

Mas ninguém nasceu abusador e vítima, meu objetivo aqui é trazer clareza numa perspectiva psicológica, dessa conta complicada que são os relacionamentos abusivos.

The Blue Ribbon Project - Domestic Abuse - 6 Insights that Shed Light on Abusive Relationships

 

Onde nasce um relacionamento abusivo

Tudo começa na autoestima. Sim, eu sei que esta frase pode parecer meio clichê, mas você já vai entender o que eu quero dizer com isso.  Quando nascemos, aprendemos a desenvolver nossas primeiras relações na infância com nossos pais, familiares ou pessoas próximas a nós.  Nós aprendemos como elas funcionam e como temos nossas necessidades básicas atendidas através do afeto e atenção.

Somos seres relacionais, isso significa necessitamos do olhar de validação do outro.  Necessitamos da troca para nos sentirmos amados e aceitos isso acontece de maneira consciente ou inconsciente o tempo inteiro.

A relação afetiva começa no nosso auto conceito, na maneira como nos vemos, com base nisso, desenvolvemos um modelo de vínculo.  Este modelo irá vai nortear as nossas relações em todas as áreas da vida: com os amigos, com a família, no trabalho e é claro…. no casal!


"Eu sempre fui insegura e achava que 
ninguém gostava de mim. 
Me faltava autoconfiança,  
me COLOCAVA SEMPRE em um degrau abaixo. 
Por causa disso, ’passei pano’ 
para muita coisa que eu não gostava. 
Por mais que eu brigasse, e não aceitasse, 
sempre voltava atrás e me culpava.” 

(Y. A., JORNALISTA,  36 anos)

Todo mundo quer um final feliz….

É fato que todo mundo quer encontrar o seu grande amor, a sua grande paixão.  Mas o que as pessoas não conseguem entender é que este primeiro grande amor tem que ser VOCÊ, caso contrário, não há referência, para você se relacionar de maneira saudável, já que toda a relação é baseada na troca.

Saber o que você pode receber, qual é o seu valor, o que você gosta e merecer ter.  Você é o vetor, o ponto de partida.  É com base na sua autoimagem, que você irá delinear sua visão sobre as suas relações.  Esta autopercepção determinará a maneira como você se coloca, interage, se posiciona reproduzindo para todos os vínculos que você desenvolve, saudáveis ou não.

Já parou para pensar, o porquê você carrega tanto lixo tóxico emocional?  Ou porquê acredita que sofre da famosa “síndrome do dedo podre“?

O Self nosso de cada dia: a importância da autoestima

Quando você tem uma visão construtiva de si, saberá solicitar ao outro de uma forma saudável o que você gostaria e precisa.  Se a contraparte não compreende, ou está em algum nível mais disfuncional, será mais fácil para você estabelecer limites ou mesmo romper o relacionamento.

Acontece que as pessoas ficam tão cegas pela carência e pelas faltas!  Elas acabam criando uma expectativa de conseguir no outro, aquilo que elas gostariam de ter.  E nessas projeções emocionais, não percebem que estão em relacionamentos abusivos.  Isso acontece porque nem sempre as relações abusivas são evidentes, muitas vem disfarçadas numa roupagem de amor e atenção. E é nesta fronteira que as coisas se complicam.

 

A equação psicológica do abusador x abusado

O perfil da pessoa abusadora:

A pessoa com perfil abusador, desenvolveu no cerne de sua estrutura psicológica uma personalidade permeada por insegurança extrema. Ela carrega um tipo de debilidade emocional.  Provavelmente ela cresceu com falta de carinho, afeto, atenção, de olhar, de toque e de palavras.  Não é comum destas demonstrações acontecerem de forma confusa e paradoxal:  “Eu te amo, mas eu te bato e grito com você”. Ou ainda “Eu te desqualifico, digo que você não vale nada, que só faz coisa errada… mas eu continuo aqui por você”.  A criança, estabelece um vínculo inseguro com os pais e cuidadores e começa a achar que isso É amor.

A consciência que expande a sua vida - Life & Self

Na tentativa de regular-se internamente, a pessoa tenta minimizar os extremos que viveu sua infância inteira. Ela tenta estabelecer um mínimo de coerência, manifestando um comportamento de controle excessivo.  São desenvolvidos mecanismos para tentar controlar a vida e as situações que estão à sua volta.  Isso acontece, porque ela tem uma ilusão de que se ela tem o controle, irá se preservar do sofrimento.

 

O perfil da pessoa abusada:

Em contrapartida, a pessoa que se sujeita ao abuso; tem um histórico de falta emocional. É bem provável que esta criança tenha percebido sua realidade com um olhar de carência iminente. Há uma sensação de vazio emocional, como se lhe faltasse algo, essa carência primária que nasceu das percepções de suas primeiras experiências de infância.

Desta forma, ela busca encontrar no mundo externo, aquilo que lhe falta internamente.  Ela procura por alguém que repare nela, que a perceba, reconheça aquilo que faltou lá trás, e mais, alguém que daria para ela o que ela gostaria de ter recebido, mas não teve. Em nome desta carência a pessoa perde a noção do limite e se sujeita à dinâmica das relações abusivas e tóxicas.

 

As 6 fases do relacionamento abusivo – do ciúme à violência

Os relacionamentos abusivos podem se transformar rapidamente em violência, a velocidade com que isso acontece dependerá de vários componentes emocionais das partes envolvidas, mas no geral, ela passa por 6 fases.

1)    Construção da imagem: o disfarce perfeito

O primeiro degrau é o que chamamos de efeito camaleão ou mimetismo. Nesta etapa, o abusador é capaz de ler,identificar e decifrar as necessidades outro.  Com base nisso a pessoa se adapta, se molda, se transforma para caber na forma daquilo que faltou à outra parte. Ela se empenha para se transformar na alma gêmea do outro, demonstra ser alguém agradável, educada até fazer a captura do outro.  Quando ela percebe que o cativou, começam os sinais de ciúmes leves, que podem ser vistos como amor, como cuidado, como preocupação, atenção, carinho: “Não saia com essa roupa, vão mexer com você”, ou ainda, “não se comporte assim, as pessoas vão te julgar”.

 

DEPOIMENTO RELAÇÕES ABUSIVAS

"No começo ele era encantador, se mostrava atencioso e cuidadoso. 
Nós acabamos não vendo esse 'excesso de cuidado' como algo ruim e não percebemos que ele vai se tornar outras coisas depois, como ciúme, posse e um ciclo de abuso. 

Ele descontava esse ciúme, até uma baixa autoestima, tudo em mim. 
Isso tornava pequenas ocasiões em grandes acontecimentos. 
Bastava eu falar com alguém que ele não gostava, que vinham brigas e até ameaças de agressão”.

(M.A., Analista Sr de Processos, 30 anos)

 

2)    Adestramento: “isso é sinal de carinho”

No geral, esse comportamento sutil passa desapercebido, e dá início a segunda fase na qual a parte abusada passa por um tipo de adestramento.

Há uma “recompensa” cada vez que a ordem é obedecida.  Esta dinâmica é reforçada por pensamentos que a parte abusada tem, do tipo: “nossa, ela realmente me vê”, “puxa ela realmente se preocupa comigo”.  Gradativamente ela vai permitindo que a parte abusadora ultrapasse os limites e quando há uma resistência ou tentativa de intervir, o abusador recua para facilitar o adestramento.

 

3)   Justificativa: “a culpa por eu ser assim, é sua”

Então começa a terceira fase que é a culpabilidade.  A parte abusadora passa culpar o outro por seu comportamento disfuncional e até mesmo agressivo.  São ouvidas frases do tipo “eu faço isso, por que você não segue o que eu te falo”, “eu tenho que ser assim, mais ‘ríspido’, firme, ‘enfático’; porque você não me escuta”.  O abusado começa a se distanciar de si, a deixar de pôr os limites, se violentando, se perdendo de si mesmo em troca de migalhas de afeto e atenção. O sentimento de culpa vai sendo cultivado e inibe a reação contra a dinâmica abusiva da relação.

4)    Distanciamento: “Vocês não entendem”

Nos altos e baixos da relação, quando o abusador percebe que a outra parte começa a querer se incomodar, ele trabalha no distanciamento. Esta é a quarta fase das relações abusivas.

A parte abusada busca um contraponto de suas ações e pergunta para as pessoas de sua confiança, “mas eu sou assim mesmo?”, “eu ajo desta forma?”. E a cada validação, o abusador começa a isolar o outro de sua família, de seus amigos e de seus colegas de trabalho; no objetivo de minar a sua capacidade de acreditar na sua rede de apoio.

Sim, a pessoa perde a sua rede de apoio, e as pessoas que lhe querem bem e estão de fora, percebem a situação e querem ajudar, são duramente questionadas, desacreditadas e neutralizadas.

"Eu estava num vórtice da relação, onde me sentia fragilizada, desolada e com a autoestima tão baixa que não tinha forças para sair. Eu estava longe de todo mundo... e até alguém conseguir te alcançar ou te estender a a mão, demora!" (M.A., Analista Sr de Processos, 30 anos)

 

 

5)   Normalização: ” Toda relação é assim, vai ficar tudo bem”

Por fim, chega a quinta fase dos relacionamentos abusivos, que é a de normalização.

Depois que a parte abusada foi dominada é submetida a uma dinâmica de oscilação emocional de amor e desprezo. Há um ciclo intermitente de tensão / explosão, seguidos de fases de reconciliação / calmaria.

Blog | cerna

A parte abusada realmente acredita que todos os relacionamentos são assim, relativiza, acha normal e ignora os sinais evidentes de abuso.

Nestes momentos, não é incomum a parte abusadora alimentar as inseguranças da outra pessoa.  Ela provoca situações de ciúmes, dando a entender que tem um ‘ex’ lhe rondando, que foi assediada na rede social, tudo para desvalorizar o outro.  A ideia é fazê-lo se sentir insuficiente e inseguro.

A mensagem oculta é “eu tenho valor, sou desejado e procurado”, enquanto a outra parte começa a acreditar que tem sorte de ter alguém assim tão especial.  Ela se contenta com os momentos de calmaria e relativiza os momentos de tensão.

 

6)    Resignação: “Ninguém vai me querer, melhor ficar assim”

No último degrau desta escada vem resignação.  A parte abusadora convence o outro de que ele é incrível!  Fala ainda que o outro nunca vai encontrar alguém como ela.  São utilizados argumentos depreciativos do tipo: “se você me largar ninguém vai te querer”, “você não é insuportável, só eu mesmo pra te aguentar”.

É neste momento que, qualquer tentativa de reagir à situação, ou de contra-argumentar pode culminar em discussões violentas. Invariavelmente estas discussões se excedem culminando na agressão física. Um dia a pessoa segura seu braço mais forte, outro dia te empurra e as coisas vão evoluindo até se transformarem em verdadeiras surras.

De acordo com o perito e mediador judicial do tribunal de justiça do Rio de janeiro Luiz Wigderowitz: “Não há uma única história que não tenha tido um longo percurso desta escada. Que vai aumentando gradativamente até chegar à violência extremada.”.

 

Tipos de violência

Quando ouvimos a palavra “violência”, automaticamente pensamos em agressões físicas, hematomas e machucados. Mas existem vários tipos de violência que não identificamos no dia a dia.  Elas passam desapercebidas, acabam sendo relativizadas ou ignoradas.   A ONU Mulheres em parceria com a GNT fez um vídeo incrível numa campanha de combate à violência contra a mulher que explica isso melhor.

Veja alguns tipos de violência nos relacionamentos abusivos:

  • Violência psicológica: quando você sofre humilhação, insultos, isolamento perseguição ou ameaças.
  • Violência moral: quando você sofre calúnia, injúria ou difamação de qualquer tipo.
  • Violência patrimonial: quando seu dinheiro é controlado, não há permissão para compras, quando seus pertences são destruídos, quando os bens e propriedades são ocultados e quando você é proibida de trabalhar.
  • Violência física: quando você sofre qualquer tipo de agressão corporal como empurrões, chutes, imobilizações ou surras.
  • Violência sexual: quando você sofre pressão para ter relações, é obrigada a fazer práticas que não gosta, há recusa ao uso do preservativo ou qualquer outro método contraceptivo.

Relacionamentos abusivos

Eu não podia ter amigos homens, ele ficava irritado se ouvisse eu conversando com a minha irmã ou minha mãe. Ele me humilhava na frente dos meus amigos e família. Exigia provas diárias do meu amor. Menosprezava meus estudos. Controlava meu dinheiro. Tinha um ciúme doentio. 

A situação ficou tão extrema que, certa vez, ele me deu três tiros. 
Com eles, eu quebrei o braço, tive os dedos e minha mão atingidos e recebi um projétil a milímetros da minha artéria.”

(L.G.S., psicóloga, 37 anos)

 

 

Sá, me ajuda! Como saio disso?

Se você se identificou com alguma das etapas acima, ou conhece alguém que esteja passando por relacionamentos abusivos, tenho certeza de que quer saber o caminho das pedras para sair disso ou ajudar outra pessoa.

A primeira coisa que você, ou a outra pessoa precisam saber é de que há luz no fim do túnel.   Você podem mais!  Se desvencilhar de relacionamentos abusivos, apesar de parecer a parte mais difícil, é só o começo.

E para não cair nesta cilada novamente é muito importante que você entenda qual foi o ônibus que você pegou pra chegar neste ponto da sua vida, ou seja, qual é a sua responsabilidade (sim, você TAMBÉM é responsável) por sair dessa e nunca mais permitir que isto te aconteça novamente.

especialista em relações abusivas"Os dois passam do limite! O abusador realmente acredita que é o amor. 
Costumo dizer que não tem culpa, tem participação, tem gente que sai de 
um emenda no outro pois não entendeu qual é sua responsabilidade nisso." 
(Luiz Wigderowitz, mediador e perito do T.J. / RJ)
Mas vamos por partes, para se desvencilhar disso você precisa:
  • Admita e reconheça os sinais de que você está sim numa relação é tóxica.
  • Seja firme, decida de fato que você merece mais passar por este sofrimento e coloque um fim neste dinâmica tóxica das relações abusivas
  • Não se isole – acione sua rede de apoio (amigos, familiares, pessoas que te querem bem podem te ajudar, acredite, ela existe!)
  • Persista: valorize quem você é, faça planos, resgate sua autoestima e não fuja da armadilha de relativizar o dano que você sofreu.
  • Busque ajuda profissional: para se fortalecer, entender o que lhe falta que fez você se submeter aos relacionamentos abusivos.   É fundamental se conhecer melhor para fazer escolhas mais condizentes com aquilo que você merece de verdade.

Há ainda redes de apoio incríveis como a iniciativa do Mapa de Acolhimento, uma rede de solidariedade que conecta mulheres que sofrem ou sofreram violência de gênero a psicólogas e advogadas dispostas a ajudá-las de forma voluntária.

 

Mensagem final:

Gostaria de fechar o texto reforçando aquilo que eu disse lá no começo:  FORTALEÇA O SEU AMOR-PRÓPRIO 🧡.

Apenas quando você conseguir ter uma visão mais positiva de você, se amar, se respeitar e aceitar o pacote completo (com qualidades e defeitos); terá condições de desenvolver relações mais saudáveis e felizes.

A chave para isso é sempre o autoconhecimento, portanto, faça terapia! Este é sem sombra de dúvida o melhor investimento que você pode fazer em si mesmo e com retorno garantido. 😉

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